segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Charles Bradley



"If you want to give a show, make it real, and people will listen to you more carefully (...) I'm singing the truth; I put my heart and soul into it. If you're gonna sing, sing from your heart and the world will hear you."
Charles Bradley, Pitchfork, 05.04.2016


Certamente te ouvimos caro Bradley... e como!! Contudo e com muita pena minha, algo tarde.




Foi com esta canção que inicie o meu romance com Charles Bradely, seis anos atrás. Quando a ouvi pela primeira vez ainda não sabia quem era Charles Bradley, de onde vinha, qual tinha sido o seu percurso, a sua vida. Para já, bastava-me a sua voz.

E que voz esta, tão velha e sofrida como a sua alma, que nos faz recordar as raízes boas e profundas de um soul cada vez mais distante e esquecido. Uma voz vivida, ferida, cheia de cicatrizes, mas igualmente e eternamente apaixonada. Foi por isso uma doce surpresa descobrir não só a sua música, como a pessoa que foi Bradley e a sua história. 

É de facto inspiradora a sua história de vida, tanto, que deu origem a um documentário.




“Charles Bradley: Soul of America” (2012), é um relato verídico e cru do que foi o seu caminho até se tornar num cantor de sucesso. Bradley não teve uma infância feliz. Em adolescente viveu durante anos nas ruas de Brooklyn, como um sem-abrigo. Em adulto ganhou a vida como cozinheiro num lar, atravessando, contudo, momentos difíceis - foi preso vítima de racismo, esteve à beira da morte numa cama de hospital e assistiu ao homicídio do seu irmão. Ainda assim, mesmo com um percurso de vida tumultuoso e, por vezes, dramático, existiu sempre algo no qual Charles Bradley nunca deixou de acreditar – o seu amor pela música.

Depois de várias tentativas frustradas para conseguir entrar no meio musical, Bradley dedicou-se a prestar tributos em clubes nocturnos ao seu ídolo, James Brown. Durante quase meio século, interpretou as suas canções sob o nome de “Black Velvet”, até que, numa dessas noites foi descoberto por Gabriel Roth – co-produtor da editora Daptone Records, que também nos deu a conhecer a querida e brilhante Sharon Jones, sua amiga, também ela chegaria até nós tarde e partiria cedo demais. Desta feita, e pela alçada da Daptone, gravou o seu primeiro disco em 2011 – “No Time For Dreaming” – um retrato fiel da sua história, em consonância também com a situação de crise que a América estava (e está) a atravessar, confrontando a tragédia e a dor com o sonho e o amor, e a esperança de um amanhã melhor. Aos 62 anos, Charles Bradley tornava-se, assim, um cantor de soul reconhecido, querido e aclamado pela crítica e pelo público.



“Victim of Love”, o seu segundo álbum editado em 2013, é um trabalho mais calmo e optimista que o seu antecessor. Enquanto “No Time For Dreaming” aborda todo o sofrimento e angústia vividos por Bradley ao longo da sua vida, bem como uma revolta latente face a uma sociedade americana injusta, o seu segundo disco segue uma linha mais suave e romântica, evidenciando o seu amadurecimento enquanto cantor. O tema-base das suas músicas, como o próprio nome do álbum indica, é o amor e se há coisa que Bradley sabe pôr nas suas canções, é amor. Face a tudo e face a todos, por muito que a vida o contrariasse, a verdade é que ele sempre foi uma vítima do amor...




Em 2016 chegaria até nós o seu terceiro e último disco, "Changes", provavelmente o seu trabalho mais poderoso e confiante. Apesar de todas as parecenças e forte influência do godfather James Brown na sua música, Bradley conseguiu traçar um caminho muito próprio, muito seu, conciliando o que de melhor cada década trouxera ao soul, tornando-o aos 68 anos não apenas mais um cantor de soul dos anos 60, mas sim num grande cantor de soul, independentemente da sua era.




Aos 68 anos foi também a idade com que nos deixou Charles Bradley, vítima de cancro. A doença já o perseguia há algum tempo, levando-o a cancelar por 2 anos consecutivos os concertos que tinha agendados no nosso país. Antes disso, passara em 2013 no EDP Cool Jazz, em 2014 no NOS Primavera Sound (ao qual tive a sorte de poder assistir) e, em 2015, no Vodafone Paredes de Coura.

Charles Bradley era intenso, imenso, tenho a certeza que como ele existem poucos. Não há melhor forma de recordar e homenagear um artista do que ouvindo a sua música com atenção. A minha homenagem faço-a aqui e em casa, quando ponho um dos seus discos a tocar. Contudo e para além da sua música, a melhor coisa que Bradley nos deixou foi um motivo. Um motivo para, ainda que pareça clichê, nunca deixarmos de acreditar nos nossos sonhos, nem desistir deles. Perante todas as adversidades, devemos continuar a lutar por fazer aquilo que amamos, independentemente de como, quando e porquê. Charles Bradley assim o fez e a sua música hoje é a prova disso.